terça-feira, 5 de agosto de 2014

O classic rock está atrapalhando o rock, principalmente no Brasil

A cena surpreendeu quem estava no estúdio e os ouvintes de uma das mais populares emissoras de rádio da África do Sul. O Deep Purple estava inteiro nos estúdios amplos na Cidade do Cabo, onde deveria se apresentar naquela noite, no segundo semestre de 2005, na turnê do razoável álbum “Rapture of the Deep''. Entrevista morna, apresentador e jornalistas pouco informados e pouco estimulados, e eis que uma pergunta sobre o posicionamento da banda no mercado desperta a fúria de Ian Gillan, o vocalista.


Sem se dirigir especificamente a alguém, disparou sem ser interrompido: “Depois que inventaram essa história de classic rock, fomos exilados a um nicho de mercado que nos condena a tocar as mesmas músicas para as mesmas pessoas de sempre. O classic rock nos limita a uma faixa de mercado que impede que consigamos divulgar nossa música em toda a sua plenitude. É maravilhoso que sejamos reconhecidos pelo que criamos em 'Smoke on the Water' ou 'Highway Star', mas, caso alguém se importe em saber, fizemos muito mais coisas depois disso, boas ou ruins, mas fizemos. Agora mesmo estamos divulgando novo álbum, mas as pessoas só querem saber do que gravamos 35 anos atrás, das histórias que vivemos na Suíça em 1971 ou no Japão em 1972, ou até mesmo por que Ritchie (Blackmore) não está mais na banda. Santo deus, isso ocorreu há 12 anos e ainda nos perguntam isso, como agora nesta entrevista. O rótulo classic rock é pernicioso e pode no futuro prejudicar o próprio gênero musical, amarrar o rock em uma camisa de força em que o novo será diluído de tal forma que sucumbirá às músicas de sempre, que por sua vez se consumirão de tal forma de que nada restará.''

As proféticas palavras de Gillan se materializaram nove anos depois, em uma realidade de mercado que está privilegiando o certo em relação ao duvidoso, onde o risco foi escanteado e as novidades ficam cada vez mais relegadas a espaços alternativos. Para músicos e profissionais envolvidos com música, especialmente no Brasil, o predomínio ilusório dentro do rock do rótulo “classic'' e consequência direta do novo modo de se relacionar com a música – e que necessariamente não é uma coisa boa infelizmente.

“O mercado musical como um todo, em todo o mundo, está menor e mais pulverizado. Ao mesmo tempo, a música perdeu um pouco de sua importância na vida das pessoas. Hoje percebemos que há menos disposição das pessoas em procurar pelo novo, em curtir e saborear a produção, seja de um grande artista ou de um iniciante. O avanço da tecnologia, tão esperado e ansiado por todos, tem o seu lado ruim: diluiu a música e arte em geral, tornando-as supérfluas. Por conta disso, o ouvinte/fã de música atual se contenta com pouco e não valoriza mais o que ouve e quem toca. E, curiosamente, no Brasil esse fenômeno atingiu em cheio o rock. Tente lembrar qual foi o último grande hit do rock nacional…'', lamenta um executivo importante do mercado musical brasileiro, que pediu para não ser identificado.

Quem vai a um show do U2, dos Rolling Stones ou do Black Sabbath não tem o menor interesse em ouvir as músicas novas do último álbum. Ouvintes preguiçosos e acomodados só querem ouvir “Sunday Bloody Sunday'', “Satisfaction'' e “War Pigs''. A coisa piora quando observamos o que ocorre nos palcos dos botecos europeus, brasileiros e norte-americanos: só músicos tocando covers, de preferência versões de sucessos antigos, gravados no mínimo há mais de 20 anos. Hits mais recentes? No máximo alguma coisa de Coldplay e Radiohead, e dos primeiros álbuns.

O desespero é geral nas grandes cidades brasileiras. Nos poucos locais onde ainda se pode ouvir rock, quase não se vê trabalho autoral. Cinco dias por semana são dedicados aos “clássicos'' do rock e do pop rock, geralmente executados por instrumentistas desmotivados para um público que normalmente os ignora, exceto quando algum megahit do passado é executado.

Os festivais de rock ainda resistem em algumas cidades, mas com um público bastante específico, me geral na área do heavy metal. Os grandes eventos, do porte de um Planeta  Rock ou Abril Pro Rock, ainda dependem de um “nomão das antigas'' parta garantir público – ou, ao menos, algum público. O Planeta Rock, por exemplo, ocorrerá em agosto em São José do Rio Preto, capitaneado por Ira! e Ultraje a Rigor, na ativa há 33 anos, Raimundos, que surgiu no começo dos naos 90, e a banda carioca Detonautas, que aos 15  anos de carreira caiu no caldeirão do classic rock. Cadê uma banda nova? Ou mesmo alternativa?

É mais do que óbvio que o classic rock precisa ter o seu espaço, só que, quando ele predomina, e de forma ostensiva, como no Brasil atualmente, todos perdem, justamente em um momento em que o rock, como um todo, perde cada vez mais espaço para o abominável funk de inspiração carioca e para gêneros de qualidade no mínimo questionável, como o pagode e o sertanejo.

Renato Lacerda, que trabalha como contador,  é guitarrista do Sarkastic, de São Paulo. Sua banda já gravou duas demos com seis músicas próprias cada, na linha do metal tradicional. Há seis meses não consegue agendar uma apresentação, mesmo com o quinteto se dispondo a tocar de graça. “Ninguém nem para para nos ouvir quando dizemos que temos trabalho autoral. Não tem lugar na Grande São Paulo para tocar. são raros os bares como o Blackmore e o Manifesto, que têm uma agenda lotada e fila de bandas esperando uma chance. Simplesmente não dá.''

Para conseguir tocar por cachês simbólicos, o Sarkastic faz covers do Iron Maiden em algumas festas e bares da zona oeste de São Paulo. “Só assim para ter o gostinho de tocar. E ainda assim temos problemas, pois a galera, em vários locais, só quer ouvir as mesmas três musicas conhecidas do Iron. Uma vez fizemos um repertório com coisas bem legais, mas não tão conhecidas em um bar na zona norte de São Paulo, e teve gente que reclamou com o dono do bar. Nunca mais recebemos convite daquele lugar'', reclama Lacerda.

Toninho Pires sofre com os mesmos problemas. Fotógrafo publicitário, costuma dizer que sua profissão é a música, ainda que seus palcos sejam bares e restaurantes pouco glamourosos da Grande São Paulo. Em dupla com parceiro Ricardinho (teclados, percussão e voz), o violonista e guitarrista ensaia uma tímida carreira autoral, apostando em um pop rock simples com viés de MPB. Vende um CD demo nas apresentações por R$ 5, gravado de forma apressada e sem requintes de produção. O problema é na hora de exibir as canções próprias.

“Não me lembro da última vez em que toquei uma música minha. Tenho de respirar muito fundo para suportar tocar as mesmas músicas de sempre da Legião Urbana, do Paralamas do Sucesso, do Ultraje a Rigor, Raul Seixas… Nada contra esses artistas, o problema é que só isso. Público e proprietários só querem isso. Já teve bar que me proibiu de tocar músicas próprias.Em outro, tive que mostrar com antecedência as músicas, e não acreditei que algumas foram vetadas pelo dono do local porque ele achava que não eram conhecidas'', diz Pires resignado.

O classic está matando o rock? Quem diria que um dia estaríamos discutindo tamanha heresia. Se não não está matando, certamente está contribuindo para a sua asfixia. É só observar quem é que consegue ainda algum tipo de vínculo com uma gravadora e colocar seus álbuns nas lojas de todo o  país – Titãs, com “Nheengatu'', Skank, com “Velocia'', e Pitty, com “Setevidas'', por exempl0.

Existe algo que se possa fazer no médio prazo para abrir espaço aos novos artistas, sem que seja necessário satanizar os clássicos e veteranos? “Tocar, tocar e tocar cada vez mais, e cada vez melhor, para três pessoas ou para mil pessoas. Fazer com que o próximo show seja melhor do que o anterior. É só isso o que resta para para artistas independentes. Trabalho de qualidade e persistência são fundamentais para que a música seja reconhecida. Reclamar não só não ajuda como piora as coisas'', recomenda Beto Bruno, cantor da bem-sucedida banda independente Cachorro Grande, do Rio Grande do Sul.

Por Marcelo Moreira.
Matéria publicada originalmente na Combate Rock no dia 04/08/2014 às 06:49

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